“O Agente Secreto” coloca o cinema brasileiro em destaque
Marcelo abastece seu fusquinha amarelo em um posto de gasolina na beira da estrada e estranha ao notar, logo à frente, um cadáver coberto por uma folha fina de papelão. O frentista, sem espanto, comenta que o corpo está ali há dias, mas que o caso só seria resolvido após o Carnaval — feriado favorito do delegado.
De repente, policiais abordam o motorista (interpretado por Wagner Moura), o interrogam sem motivo aparente e partem com um suborno de cigarros, sem sequer olhar o morto. A cena, tão absurda quanto irônica, tira risadas da plateia. É assim a abertura de O Agente Secretonovo filme de Kleber Mendonça Filho.
O thriller acompanha a volta do protagonista a Recife, sua cidade natal, em busca de reconexão familiar e a resolução dos conflitos de seu passado. Acontece que esse processo se torna cada vez mais difícil, já que ele é um cientista perseguido por poderosos durante a ditadura militar.
A narrativa de duas horas e quarenta minutos — que transita entre passado, presente e futuro — combina elementos de suspense com uma reflexão sobre memória e justiça.

“O filme não é um grito contra a ditadura. Ela é um momento histórico pavoroso que o Brasil viveu. Fico feliz quando as pessoas assistem e dizem que aprenderam algo sobre os anos 1970. É ótimo, mas não fiz com a intenção de ensinar nada a ninguém”, diz Kleber.
Apesar da despretensão, o cineasta entende e se orgulha da magnitude do lançamento. Não é para menos: a gravação custou 5 milhões de euros e reuniu profissionais de dez países, como França, Holanda e Alemanha.
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“A produção é absolutamente personalizada. É pessoal, como todos os outros foram, mas, pelo tamanho, há um interesse do mercado.”
O elenco é um dos pontos altos. Além de Wagner Moura no papel principal, Maria Fernanda Cândido interpreta Elza, uma mulher misteriosa disposta a ajudá-lo em seu maior desafio: fugir do país com o filho. A atriz retorna às telas em uma fase da carreira marcada por escolhas seletivas, alinhadas aos seus valores.
Nesse sentido, o convite reafirma seu vínculo com o cinema autoral brasileiro. “Kleber me contou que escreveu a personagem pensando em mim. Isso me enche de orgulho e de alegria”, diz.
Outra presença marcante é a da potiguar Tânia Mariaatriz de 78 anos, como Dona Sebastiana, uma proprietária de apartamentos que abriga os refugiados políticos. Mais do que cuidar, ela envolve cada um com humor e afeto, trazendo um tom de humanidade ao longa.
DNA Pernambucano
Embora seja uma coprodução internacional, o que dá cadência à narrativa é Recife — não apenas como cenário, mas por toda a força cultural que atravessa a tela.
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O frevo surge como contraponto de vitalidade em uma trama marcada por tensões existenciais. E nesse mesmo terreno popular, surge a figura lendária da Perna Cabeluda, personagem do folclore urbano que, entre o real e o fantástico, assombra e fascina gerações.
Conta-se que, durante a noite, uma perna peluda saltava pelas ruas perseguindo e atacando pessoas sem razão. A La Ursa, tradição do carnaval pernambucano, não perde a vez: a figura de um urso feita de estopa participa de uma sequência ao mesmo tempo incrível e assustadora.
Fazer da cidade um personagem é uma assinatura já conhecida do diretor. Em O Som ao Redor (2012), o cotidiano da classe média e suas contradições estão no centro do conto.
Em Aquário (2016), o litoral se transforma em palco de memórias pessoais e disputas de território. Já em Bacurau (2019), o sertão expandiu esse olhar, mas sem perder o elo com as raízes regionais. “Faço filmes sobre Recife porque eu sou daqui. Cada um deles mostra um lado diferente. Juntos, fazem parte de um todo.”

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Se ver representado em salas de cinema do mundo é motivo de orgulho para o povo recifense. Mais do que visibilidade, esse movimento fortalece uma cadeia criativa de artistas e técnicos que se consolida a cada nova produção.
“Fiquei muito impressionado quando descobri que, no Instagram, há uma hashtag do Edifício Oceania, cenário de Aquarius. Quando cliquei, me deparei com milhares de fotos de pessoas na frente do prédio. Isso é muito bonito porque me lembra quando fui aos Estados Unidos pela primeira vez, adolescente, e ficava feito um bobo visitando locações de filmes”, reflete Kleber.
Esse processo também transforma o local em um polo de efervescência cinematográfica, além de movimentar o turismo. “Cultura é decisão política e ela faz com que novos talentos venham conhecer nossa gente”, afirma Raquel Lyragovernadora de Pernambuco.
Prestígio internacional
A exibição em Cannes, em maio, foi recebida com um feito raro: 13 minutos de aplausos ininterruptos. Do reconhecimento caloroso do público vieram também os prêmios de Melhor Direção para Kleber Mendonça Filho e Melhor Ator para Wagner Moura.
Ele ainda arrebatou o Prêmio da Crítica Internacional (FIPRESCI) e o Prix des Cinémas d’Art et Essai (AFCAE), que representa cinemas independentes e de arte na França, consolidando-se como uma obra capaz de atravessar fronteiras. “Quero que o filme seja visto no mundo inteiro como um filme universal, ainda que feito no Brasil”, afirma o realizador.
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Poucos meses depois, em setembro, o título foi escolhido para representar o País na disputa por uma vaga ao Oscar 2026, na categoria de Melhor Filme Internacional — um gesto que consagra sua força artística e simbólica.
A estreia nacional acontece em 6 de novembro, pela Vitrine Filmes. Já nos Estados Unidos, caberá à Neon, distribuidora que levou ao público títulos como Parasita e anoraa missão de apresentar a história.
O Agente Secreto chega à temporada de premiações com fôlego de favorito pela força de um roteiro que prende o espectador do começo ao fim.
Isso se constrói a partir de um ritmo crescente de tensão, à medida que Marcelo luta para se manter invisível. No fim, a sensação que fica é que o enredo não se limita a falar de um homem que quer sobreviver, mas de um diretor que se preocupa em preservar o legado do que acredita ser importante: o cinema, as mitologias, a liberdade.
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O Recife de Kleber
Alguns dos pontos mais importantes da filmografia do diretor

Parque Treze de Maio
No coração da cidade, é um dos cenários de O Agente Secreto que reforça a atmosfera de encontros entre o real e o imaginário – já que é nesse espaço que a figura mitológica da Perna Cabeluda se manifesta pela primeira vez.
Ginásio de Pernambuco
A instituição de educação, fundada em 1825, foi a escola de Clarice Lispector e Ariano Suassuna. Em O Agente Secreto, o espaço é uma repartição pública. “É um dos melhores estúdios em que já trabalhei. É um espaço histórico com uma presença emotiva fortíssima. Você coloca a câmera e, poxa, o resultado é incrível.”
Cinema São Luiz
Ícone do centro da cidade, o edifício, inaugurado em 1952, é onde o cineasta se formou como espectador. “Ele sobreviveu por 70 anos, não virou igreja e não está fechado. Não virou um shopping subdividido em cem partes. O cinema continua sendo o que era no começo. Não é pouca coisa, é muito impressionante. Até as luminárias estão intactas.”
Ponte Duarte Coelho
Este é o local onde a imponente alegoria do Galo da Madrugada, o maior bloco de carnaval do mundo, é montada anualmente. É ela que separa o Edifício Trianon e o Cine Art-Palácio do Cinema São Luiz.
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